Não é preciso dizer que, como sempre, o livro é bem melhor que o filme. O caso desta vez é o “Batismo de Sangue”, a obra de autoria de Carlos Alberto Libânio Christo, ou melhor, Frei Betto. O título impactante é uma alusão à cruel perseguição que os primeiros cristãos sofreram – inclusive com lançamento às feras, entre outras provações – antes da conversão romana.
O livro, que ganhou o prêmio Jabuti em 1985, fala sobre a relação dos padres dominicanos com a Aliança Libertadora Nacional – ALN de Carlos Marighella, personagem da resistência armada ao golpe militar após o endurecimento do regime com o AI-5, em 1968. Apagado dos livros de História do Brasil pela tenebrosa Educação Moral e Cívica, Marighella permanece até hoje, como um ilustre desconhecido. O tal “terrorista” tirava o sono do andar de cima e suas autoridades subalternas aos interesses norte-americanos. Para evitar que suas preciosas “repúblicas das bananas” não viessem a parar nas mãos da aventura comunista tropical, em pleno vigor da guerra fria, os ianques apoiaram e treinarem dirigentes de regimes autoritários por toda América Latina.
Sabonete-bombaEmbora haja um reconhecido esforço no sentido de se preservar o essencial, a película, como não poderia deixar de ser, passa batida em vários aspectos. Não menciona, por exemplo, a trajetória dos comunistas no Brasil, desde a fundação do PCB até a ruptura de Marighella com a linha cautelosa do Partido. Nem os fatos que o levaram ao caminho da luta armada. Sem dúvida, a omissão mais lamentável é o pitoresco episódio do sabonete que Betto carregava quando foi preso. O objeto fora cuidadosamente retalhado, o que retrata bem o ambiente paranóico em que estavam mergulhados.
Por outro lado, o roteiro opta por destacar aspectos pontuais, resultando num drama demasiado arrastado. Após o crescendo rumo ao clímax, que vai das prisões e torturas, passando pela delação e o assassinato do líder guerrilheiro, até a expiação dos “pecados” numa celebração eucarística, a seqüência perde o ritmo. Ao descrever a crescente perturbação mental de Tito, desce uma ladeira enfadonha até o desfecho sem novidades, uma vez que corresponde à primeira cena do filme.
Mesmo com alguns tropeços, o mérito do longa, além da excelente fotografia, é recontar aspectos sombrios da nossa história recente. Ou seja, difundi-la para gerações que não a vivenciaram e que parecem ter adormecido a capacidade de se indignar com as injustiças. Não que passemos a uma idealização saudosista do passado. Nem que tal relato seja exatamente uma novidade. Mas trata-se de uma abordagem radicalmente diferente do frívolo “Que é isso companheiro?” (1997), do derrotista “Lamarca” (1994), do despretensioso “O Sol – Caminhando Contra o Vento” (2006) ou do otimista “Peões” (2004), por exemplo. “Batismo...” tem uma identificação lírica e engajada com os sacrifícios soterrados que gestaram nossa engatinhante “democracia”.
O Calvário de TitoInterpretado por Caio Blat no filme, Tito de Alencar Lima era cearense. Nasceu em Fortaleza em 1945. Quando estudante secundário jogava pelada na rua. Militou na Juventude Estudantil Católica, na qual cresceu seu compromisso com os pobres. Foi morar em Recife em 1963 e tornou-se dominicano. A ordem cujo padroeiro é o tal Frei Galvão, recém-santificado.
E por que Tito foi tão barbaramente torturado? Qual a razão disso, uma vez que os militares já dispunham das informações que necessitavam? Lúcia Alencar, sobrinha de Tito, acredita que nunca perdoaram o fato de que ele fora um dos organizadores do malfadado Congresso da UNE, em Ibiúna, em 1968. Além disso, a emboscada a Marighella havia sido organizada pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), a polícia política de Fleury e seu esquadrão da morte, o que aguçou o sadismo dos órgãos de inteligência que igualmente queriam “mostrar serviço”.
No Tribunal Militar, o juiz chega a dizer que a tortura, por ser algo tão abominável, não deveria ser citada, a fim de evitar o sofrimento e a comoção pública. Mas a verdade insiste em aparecer. O filme teima em buscar retratar com imagens a contundência das palavras de Frei Tito no relato “Denúncia da tortura”, escrito clandestinamente na prisão, em 1970. Nele consta a advertência do capitão Albernaz: “Se não falar será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis.”
De fato, Tito foi tão violentamente massacrado, a ponto de encontrar no martírio a saída: “Na cela cheia de lixo, encontrei uma lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado pressentiu a minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero. Mas no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros...”
No entanto, Tito sobreviveu para contar. E o seu gesto de alerta correu o mundo e tornou-se um símbolo da luta por direitos humanos. As pressões internacionais vão aos poucos ajudando a minar a sustentação ao regime brasileiro.
Alguns tempo depois, banido, desencantado com o desbunde dos exilados, enlouquecido de saudade, vitimado pelo abalo psicológico das dores marcadas em sua alma, Tito expira em 1974, em Lyon. Preso, torturado, deportado e assassinado pela ditadura.Um, entre milhares.
Daí veio de mansinho a Anistia, e o Henfil publicava cartas na revista “Isto É”: “Mãe, todos voltaram, mas falta um que não chegou...”
Serviço:
BETTO, Frei. Batismo de Sangue. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
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